Compensação de tributos federais: a dupla aplicação de penalidades pelo Fisco
23/03/2018
Fonte: JOTA
Argumentos não faltam para embasar o questionamento dos contribuintes
Com a edição da Lei nº 12.249/2010 1, foi introduzida no ordenamento jurídico autorização para a cobrança de multa de 50% sobre o valor das compensações não homologadas pelo fisco 2. Até então, em casos de não homologação, o contribuinte apenas recebia despacho decisório indeferindo a compensação com a cobrança adicional de juros e multa moratória limitada a 20%. Como a apresentação de declaração de compensação pelo contribuinte já seria suficiente à constituição do crédito tributário, o lançamento pelo fisco com imposição de multa punitiva seria dispensável 3.
À época em que a Lei nº 12.249/2010 foi editada, a imposição da penalidade se justificou pelo fato de que alguns contribuintes estariam se utilizando de créditos inexistentes como forma de obter certidão negativa de tributos federais ou mesmo para não pagar o débito, contando com a homologação da compensação pelo decurso de prazo4. Assim, a demora do fisco em analisar as compensações seria empregada em favor dos contribuintes de má-fé.
A nova regra causou grande descontentamento aos contribuintes, que se sentiram constrangidos em exercer livremente seu direito legítimo de compensar créditos tributários e deixar à arbitrariedade do fisco a sua apreciação com a possibilidade de cobrança de multa mesmo antes de se decidir de forma definitiva quanto à insuficiência do credito utilizado na compensação.
Na realidade, como se observa da própria redação da norma e mesmo da exposição de motivos que a embasou, a aplicação da penalidade estaria condicionada à confirmação da falta de legitimidade ou insuficiência do crédito utilizado pelo contribuinte para realizar as compensações. Contudo, o que se verificou no caso concreto é que os contribuintes vêm sofrendo autuações sem que essa aferição tenha efetivamente ocorrido.
Após anos sem que essa regra tenha sido rigorosamente aplicada, nos últimos meses o fisco federal, talvez até em virtude da dificuldade orçamentária atual, parece estar correndo atrás do “tempo perdido”. Logo após receber o despacho decisório negando a compensação, o contribuinte recebe uma autuação formalizando a cobrança de multa isolada de 50% sobre o valor do débito compensado sem que este tenha sequer exercido seu direito de defesa na esfera administrativa acerca da decisão que não homologou sua compensação.
A questão é: se a imposição da multa ao contribuinte decorre de decisão que reconheceu que o crédito é insuficiente, essa decisão deveria ao menos ser definitiva. Contudo, a prática atual das autoridades fiscais diverge da própria lei e já determina a imposição de multa ainda no início do processo administrativo. Há claro pressuposto por parte das autoridades fiscais de que o contribuinte agiu incorretamente sem que esse fato tenha sido comprovado por meio do devido processo legal, garantindo-se ao contribuinte o exercício do direito de defesa mediante amplo contraditório5.
A situação é tão caótica que o contribuinte recebe uma decisão já aplicando multa de 20% sobre o valor da compensação não homologada e logo em seguida uma autuação para cobrança de multa isolada de mais 50% sobre esse valor. Essa cobrança representa claramente uma dupla penalização do contribuinte em decorrência do mesmo fato. Nesse aspecto, inclusive, vale lembrar que a atuação da administração deve ser pautada nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, de forma que a penalidade imposta ao contribuinte não implique em dano maior do que o necessário à indução de determinado comportamento.
Na contramão dos princípios que norteiam a administração, a imposição de penalidade pelo fisco nesta ocasião não guarda proporção com a conduta praticada. No pedido de compensação o contribuinte já informa ao fisco a existência de um débito (quitado por meio de compensação), dispensando qualquer esforço das autoridades fiscais de investigação quanto à sua existência por meio de apuração de livros e documentos fiscais.
Ou seja, não há omissão por parte do contribuinte no tocante à apuração do tributo ou mesmo de suas receitas, jogando às claras com a Receita Federal. Nessa situação, a multa moratória de 20% já representa penalidade suficiente para coibir a realização de prática danosa pelo contribuinte.
Vale observar que o Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, afastou a cobrança de multas excessivas, que se mostram inadequadas à satisfação dos fins pretendidos6. Isso porque, nossa Constituição Federal resguarda o direito à propriedade7 vedando a imposição de multas com o intuito confiscatório8. A cobrança de multa adicional de 50% quando ao contribuinte já foi aplicada multa moratória não é apenas desmedida, mas representa claro desvio de finalidade.
A pretexto de se punir uma conduta ilícita, a regra acaba intimidando o contribuinte para que deixe de exercer o seu direito de petição assegurado constitucionalmente9. Nesse aspecto, a imposição de multa sobre compensações não homologadas representa sanção política, prática rechaçada pela nossa Suprema Corte por coagir o contribuinte em benefício desproporcional da administração.
Não bastassem todas as negativas de direito ao contribuinte, não podemos esquecer que a instauração de novo processo administrativo para cobrança de multa isolada – sem que ao menos o despacho decisório seja definitivamente julgado – representa verdadeira ineficiência processual e econômica. Não há nenhum prejuízo causado à administração caso o fisco se abstenha de lavrar a autuação, mesmo que ao final seja reconhecida como indevida a compensação realizada pelo contribuinte.
Contudo, caso seja reconhecida ao final a correção das compensações realizadas, terá o contribuinte constituído advogado nos autos e incorrido em elevados custos para se defender duplamente. Não bastasse isso, a administração também terá incorrido em custos na condução de processos administrativos descabidos.
O tema é bastante polêmico e tem se mostrado cada vez mais relevante diante do considerável aumento no número de contribuintes que vêm enfrentando essa questão na prática. Já existem diversos precedentes favoráveis dos Tribunais Regionais Federais10 que afastam a cobrança da multa no caso concreto, sendo que a Corte Especial do TRF-4 já reconheceu, inclusive, a inconstitucionalidade da regra trazida pela Lei nº 12.249/2010 no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade nº 5007416-62.2012.404.000011.
Argumentos não faltam para embasar o questionamento dos contribuintes quanto à aplicação dessa multa, seja se defendendo da autuação na esfera administrativa ou se antecipando à discussão na esfera judicial. Esperamos que o entendimento manifestado nesses precedentes seja em breve confirmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 796.939/RS, que já teve a repercussão geral conhecida pela Corte.
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1 Conversão da Medida Provisória nº 472/09.
2 Artigo 74, §17 da Lei nº 9.430/96, cuja redação foi posteriormente alterada pela nº 13.097/15, resultante da conversão da Medida Provisória nº 656/14.
3 Nos casos de lançamento de ofício, aplica-se multa de 75% do valor do tributo não recolhido ou não declarado, conforme disposto no artigo 44, inciso I, da Lei nº 9.430/96.
4 EM Interministerial nº 00180/2009 – MF/MDIC. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/Exm/EMI-00180-MF-MDIC-09-Mpv-472.htm
5 O artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal estabelecem como direitos e garantias fundamentais o devido processo legal, bem como o exercício do contraditório e ampla defesa.
6 Quanto ao tema, vale destacar o julgamento dos seguintes casos: ADI nº 551/RJ, RE nº 523.471/MG e RE nº 754.554/GO.
7 Direito assegurado pelo artigo 170, inciso II da Constituição Federal.
8 O artigo 150, inciso IV da Constituição Federal veda o uso de tributo com efeito confiscatório.
9 É assegurado ao cidadão o direito de peticionar aos órgãos do poder público sem que lhe seja imposto quaisquer entraves para tanto, a teor do que dispõe o artigo 5º, inciso XXXIV, “a” da Constituição Federal.
10 No âmbito do TRF-3, podem ser mencionados os seguintes julgados: (i) Apelação nº 0008193-05.2011.4.03.6109; (ii) Apelação nº 0014896-42.2012.4.03.6100; (iii) Agravo de Instrumento nº 0013414-89.2013.4.03.0000; (iv) Apelação nº 0014896-42.2012.4.03.6100; (v) Apelação nº 0008193-05.2011.4.03.6109; e (vi) Apelação nº 0007747-02.2011.4.03.6109. No TRF-4, merecem destaque os seguintes casos: (i) Apelação nº 5000864-47.2014.404.7005; (ii) Apelação nº 5025848-14.2013.404.7108; (iii) Apelação nº 5002145-47.2014.404.7002; (iv) Apelação nº 5000353-40.2014.404.7105; (v) Apelação nº 5029438-23.2013.4.04.7100; (vi) Apelação nº 5004843-60.2013.4.04.7002; (vii) Apelação nº 5002202-34.2011.4.04.7111; (viii) Apelação nº 5025656-76.2011.4.04.7100; (ix) Apelação nº 5004042-44.2013.4.04.7003; e (x) Apelação nº 5018585-14.2011.4.04.7200.
11 De acordo com o entendimento da Corte Especial do TRF da 4ª Região manifestado no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade nº 5007416-62.2012.404.0000, a aplicação de multa isolada em casos de indeferimento de compensação viola o direito fundamental de petição, na medida em que inibe os contribuintes de buscar perante o Fisco a restituição de valores indevidamente recolhidos. Além disso, foi observado que o valor da multa cobrada (de 50% do valor do crédito) é excessivo e afronta o princípio da proporcionalidade, uma vez que inexiste relação de adequação entre o meio utilizado e os fins pretendidos.
Autores: Rodrigo Correa Martone, Gabriela de Souza Conca, Henrique Amaral Lara