Equivocada concepção do caráter vinculante dos Pareceres Normativos no âmbito do CMT
08/04/2020
Fonte: JOTA
Adoção indiscriminada de Pareceres Normativos pelo órgão administrativo retira sua independência garantida por lei
A edição de Pareceres Normativos pela Secretaria de Fazenda do Município de São Paulo interpretando a aplicação da legislação relativa ao ISS se tornou mais frequente nos últimos 5 anos. Desde 2016 foram editados cerca de 10 pareceres que acabaram servindo de base para autuação de contribuintes de forma retroativa pelas autoridades fiscais.
Casos clássicos decorrem da aplicação dos Pareceres Normativos nºs 1/16[1] e 4/16[2], que discorrem, respectivamente, sobre (i) a incidência do ISS sobre o serviço de inserção de propaganda e publicidade anteriormente à edição da Lei Complementar nº 157/16 e (ii) a não incidência do ISS sobre os serviços desenvolvidos no Brasil cujo resultado se verifique no exterior.
No primeiro caso, por exemplo, o Município de São Paulo passou a cobrar de forma retroativa o ISS sobre a atividade de inserção de publicidade online por enquadrá-la no item 17.06 da Lista de Serviços[3], que dispõe sobre “propaganda e publicidade, inclusive promoção de vendas, planejamento de campanhas ou sistemas de publicidade, elaboração de desenhos, textos e demais materiais publicitários”.
Ocorre que esse item se refere à atividade tipicamente desempenhada por agências de publicidade e não à atividade de inserção/veiculação de publicidade, como foi reconhecido no passado por inúmeras Soluções de Consulta editadas pelo Município[4]. A atividade de inserção de publicidade apenas foi incluída na Lista de Serviços do Município de São Paulo em 2017 com a edição da Lei Municipal nº 16.757/17, autorizada pela Lei Complementar nº 157/16[5]. Portanto, na tentativa de atingir fatos geradores anteriores à edição da Lei Municipal nº 16.757/17, o Município editou o PN nº 1/16 determinando equivocadamente o enquadramento da atividade de inserção de publicidade no item 17.06 da Lista de Serviços com relação ao passado.
No segundo caso, o Município acabou trazendo um novo conceito de “resultado do serviço” para fins de caracterização de “exportação de serviços” imune ao ISS sem qualquer previsão na Lei Complementar nº 116/03, que estabelece as regras gerais do imposto e deve ser observada pelos Municípios quando da edição das respectivas legislações.
Com base no PN nº 4/16, o serviço será considerado exportado tão somente quando “quando a pessoa, o elemento material, imaterial ou o interesse econômico sobre o qual recaia a prestação estiver localizado no exterior”. Não bastasse a orientação ser extremamente restritiva, o Parecer Normativo vai além e ainda enumera regras específicas para determinados serviços sem qualquer justificativa plausível (como serviços de intermediação, pesquisa e desenvolvimento, informática, dentre outros).
A despeito dos inúmeros argumentos que podem ser levantados para questionar o teor dos Pareceres Normativos apontados acima, que não são objeto de discussão do presente artigo, vale uma análise mais aprofundada sobre a efetiva vinculação do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo (“CMT”) ao teor desses Pareceres quando analisados os casos concretos na esfera administrativa.
Temos visto com frequência a aplicação indiscriminada de Pareceres Normativos pelo CMT para manter autuações lavradas contra contribuintes sob o pretexto de que o órgão administrativo estaria vinculado ao conteúdo do referido ato normativo. No entendimento dos julgadores do CMT, a afastamento dos Pareceres Normativos nos casos concretos encontraria óbice no artigo 53, parágrafo único da Lei Municipal nº 14.107/05, que assim dispõe: “Não compete ao Conselho Municipal de Tributos afastar a aplicação da legislação tributária por inconstitucionalidade ou ilegalidade”[6].
Entendemos, entretanto, de forma contrária. O CMT possui total autonomia em suas decisões e não deve se curvar necessariamente à interpretação da Secretaria de Fazenda sobre determinada matéria tributária, sob pena de esvaziar por completo sua função.
Sobre esse ponto, importante observar que a própria Lei Municipal nº 14.107/05, que instituiu o CMT, e o Decreto nº 54.800/14, que a regulamentou, concedeu ao órgão administrativo completa “independência quanto à sua função de julgamento”[7]. Essa independência serve justamente para garantir que o julgador manifeste sua opinião sobre determinada controvérsia com autonomia e imparcialidade depois de analisar o sistema tributário como um todo.
Nesse sentido, temos visto alguns votos recentes de julgadores do CMT que manifestaram posição contrária ao teor de Pareceres Normativos editados pelo Município justamente por conta da necessidade de se analisar de forma ampla a legislação tributária em vigor, em detrimento de ato normativo isolado, bem como diante da independência do órgão administrativo em relação ao conteúdo do Parecer Normativo como forma de preservar sua função de atuação com imparcialidade.
No Processo Administrativo nº 6017.2019/0036355-0, por exemplo, o voto do julgador concluiu que “o parecer extrapola o disposto na própria Lei Municipal nº 13.701/2003, que não incluiu no item 17.06 os serviços de divulgação de publicidade, o que não é permitido às Leis Municipais que instituem o ISS no âmbito dos Municípios. A Lei Complementar 116/03 estabelece normas gerais para o ISS e determina taxativamente quais os serviços tributáveis pelo ISS”.
No Processo Administrativo nº 2014-0.359.680-4, por sua vez, o julgador ressaltou que ainda que o Parecer Normativo “possa ser entendido como ato normativo que passou a integrar a legislação tributária, entendo que o Conselho Municipal de Tributos não está obrigado a acolhê-lo, justamente porque a Lei Municipal nº 14.107/2005 garantiu a este Conselho a independência de julgamento, nos termos do art. 52”. Isso porque “a independência de julgamento representa a garantia necessária e a segurança jurídica imprescindível para que o julgador possa manifestar sua opinião com imparcialidade sobre o tema posto sob exame para a Câmara julgadora”.
O fato é que a aplicação de Pareceres Normativos pelos órgãos administrativos de julgamento de forma indiscriminada gera uma série de prejuízos não apenas aos contribuintes, mas à sociedade como um todo.
Sem a devida apreciação da matéria pelo órgão administrativo não há contraditório e ampla defesa, princípios essenciais à justiça previstos no artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal. Ainda, como consequência lógica da ausência de análise de mérito pelo CMT, há o encerramento precoce de discussões tributárias no âmbito administrativo, abarrotando o Judiciário com processos que poderiam ser facilmente concluídos na esfera administrativa sem onerar o contribuinte e a sociedade com custas processuais, honorários de advogados, custos de garantias e sucumbência devida pelo Município vencido no Judiciário.
Diante desse cenário, nos parece evidente que o entendimento sobre a vinculação do CMT aos Pareceres Normativos emitidos pela Secretaria de Fazenda é absolutamente equivocado e não apenas ofende diversas prerrogativas constitucionais dos contribuintes – gerando prejuízos significativos – como também agrava o já saturado contencioso judicial tributário brasileiro e diminui por completo a função e relevância do órgão administrativo.
Também não podemos deixar de mencionar que a adoção desse entendimento pelos Conselheiros do CMT representa um verdadeiro contrassenso em um contexto atual de reforma tributária, em que muito se discute sobre os gargalos do nosso moroso e sobrecarregado Poder Judiciário. Espera-se, como prerrogativa de justiça, que os julgadores do CMT reconheçam sua autonomia e importância da sua função e mais vozes venham a reconhecer a independência do tribunal com relação às orientações expedidas pela Secretaria de Fazenda.
[1] Parecer Normativo da Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico nº 1, de 9 de março de 2016.
[2] Parecer Normativo da Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico nº 4, de 9 de novembro de 2016.
[3] Atualmente prevista na Lei Municipal n° 13.701, de 24 de dezembro de 2003.
[4] Nesse sentido, vale mencionar as Soluções de Consulta SF/DEJUG nºs 26/15, 1/13, 2/13, 4/13, 30/13, 10/12, 23/11, 32/09, 36/09 e 14/08.
[5] O ISS é um tributo de competência municipal que incide sobre a prestação de serviços expressamente previstos em Lei Complementar editada pelo Congresso Nacional, conforme disposto no artigo 156, inciso III, da Constituição Federal de 1988. A Lista de Serviços passíveis de tributação pelos Municípios está atualmente anexada à Lei Complementar nº 116, de 31.7.2003 (“LC nº 116/03”). A Lei Complementar nº 157, de 29.12.2016, atualizou a Lista de Serviços prevista na LC nº 116/03 e incluiu, dentre outros itens, o item 17.25 referente à “Inserção de textos, desenhos e outros materiais de propaganda e publicidade, em qualquer meio (exceto em livros, jornais, periódicos e nas modalidades de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita)”.
[6] As decisões proferidas nos Processos Administrativos nºs 6017.2018/0068854-6 e 6017.2018/0079386-2 ilustram esse posicionamento.
[7] Lei Municipal nº 14.107/05:
“Art. 52. Fica criado o Conselho Municipal de Tributos, órgão integrante da Secretaria Municipal de Finanças, composto por representantes da Prefeitura do Município de São Paulo e dos contribuintes, com independência quanto à sua função de julgamento”.
Decreto nº 54.800/14:
“Art. 1º O Conselho Municipal de Tributos, criado pela Lei nº 14.107, de 12 de dezembro de 2005, é órgão colegiado judicante, diretamente subordinado ao Secretário Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico e independente quanto à sua função de julgamento, que tem por finalidade o julgamento, em grau de recurso e em caráter definitivo, dos processos administrativos fiscais decorrentes de impugnação de notificação de lançamento ou de auto de infração relativos a tributos administrados pela Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico, bem como a tributos abrangidos pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte Simples Nacional, lançados na conformidade do que dispõe o Capítulo IV da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, por Auditor-Fiscal Tributário Municipal”.
Autores: Gabriela de Souza Conca, Mariana Monfrinatti Affonso de André e Carolina Oliveira Lopes Garcia