STJ contraria entendimento do STF sobre desconstituição da coisa julgada por ação rescisória
29/06/2019
Fonte: JOTA
Precedente compromete segurança jurídica tão reivindicada pela sociedade
No último dia 14.5.2019, a Segunda Turma do STJ proferiu decisão inusitada que dispensou a propositura de ação rescisória pela Fazenda Pública para desconstituir decisão transitada em julgado obtida pelo contribuinte1.
No caso analisado pelo Tribunal, o contribuinte possuía em seu favor decisão que afastava a cobrança do ISS sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais, cobrança esta que foi posteriormente legitimada pelo STF em Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (“ADIN”)2.
No entendimento da Segunda Turma, considerando que a relação jurídico-tributária é continuada, a decisão obtida pelo contribuinte apenas deveria prevalecer enquanto persistirem as razões de fato e de direito que a embasaram3.
No caso, a declaração de constitucionalidade da regra que autorizava a cobrança do imposto posteriormente ao trânsito em julgado da decisão obtida pelo contribuinte representaria alteração nas circunstâncias de direito da matéria analisada capaz de relativizar a coisa julgada.
O curioso e, de certa forma preocupante, é que o Tribunal dispensou a propositura de ação rescisória pelo Município para desconstituir a coisa julgada, reconhecendo a aplicação imediata do precedente do Supremo ao caso do contribuinte.
Sobre o tema, vale notar que a legislação processual permite a relativização da coisa julgada no caso de “relação jurídica de trato continuado” desde que presentes os requisitos legais (alteração nas circunstâncias de fato ou de direito) e observadas as cautelas necessárias (propositura de ação própria).
No caso concreto examinado pelo STJ, todavia, muito embora o julgamento da ADIN pelo Supremo possa representar alteração da matéria de direito que justificasse a revogação da decisão obtida pelo contribuinte, essa análise não foi feita pelo Poder Judiciário em ação própria.
O ajuizamento de ação rescisória autônoma é essencial para que o Poder Judiciário possa aferir a existência de causa modificativa do estado de fato ou de direito da relação jurídica abrangida pela coisa julgada. Essa análise, em hipótese alguma, poderia ficar a critério do próprio fisco.
Ao chancelar a conduta discricionária do fisco no caso concreto – dando-lhe autonomia para exercer papel exclusivo do Poder Judiciário – , o STJ acabou violando a própria regra processual, além do princípio da segurança jurídica e a própria coisa julgada em si.
Nesse aspecto, vale notar que o entendimento que prevalece no STF até o momento, contudo, é no sentido de que a revisão da coisa julgada está necessariamente atrelada ao ajuizamento de ação rescisória pela parte interessada4. A Segunda Turma do STJ, contudo, não se atentou para esse ponto.
Outra questão que merece ser destacada quanto à decisão do STJ diz respeito ao marco temporal para se fazer valer o novo entendimento do Supremo que contraria o disposto na decisão transitada em julgado. A decisão da Segunda Turma não deixa claro a partir de que momento o contribuinte que possui em seu favor decisão judicial transitada em julgado poderia vir a ser demandado ao recolhimento do tributo.
Sob esse ponto, ressaltamos que em observância à regra constitucional que protege a segurança das relações jurídicas devem ser resguardados, ao menos, os atos praticados sob a égide da decisão judicial transitada em julgado até que essa decisão seja reformada por ação própria.
Mesmo que se admitisse a dispensa de ação rescisória para desconstituir a decisão judicial que transitou em julgado – o que, a nosso ver, vai contra os princípios da segurança jurídica e coisa julgada – ainda assim devem ser preservadas as ações do contribuinte de boa-fé que observou a decisão obtida em seu favor até que o Supremo tenha se manifestado de forma contrária em decisão definitiva com efeito erga omnes. Portanto, apenas a partir desse momento o contribuinte poderia vir a ser demandado a se adequar ao entendimento do STF.
A decisão da Segunda Turma ainda não é definitiva e precisa ser analisada com cautela. Muito embora represente um precedente isolado a ser levantado pelos fiscos para autuar imediatamente os contribuintes – a despeito da ausência de ação rescisória -, temos que ter em mente que as manifestações do STF sobre o tema até o momento são favoráveis à necessidade de ação rescisória para desconstituir a coisa julgada. Ainda, compete ao Supremo analisar a matéria em última instância, o que de fato deve ocorrer em breve nos Recursos Extraordinários nºs 955.227/BA e 949.297/CE, que já tiveram repercussão geral reconhecida.
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1 Recurso Especial nº 1.652.295/MG.
2 Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 3.089/DF.
3 Nesse aspecto, o artigo 505 do Código de Processo Civil assim dispõe:
“Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:
I – se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
II – nos demais casos prescritos em lei.”
4 Recurso Extraordinário nº 730.462/SP.
Autores: Gabriela de Souza Conca e Luiz Roberto Peroba