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Uber: reflexos tributários do reconhecimento da ausência de vínculo empregatício

06/03/2020

Fonte: JOTA

Judiciário confirma a natureza da atividade de intermediação das plataformas da economia colaborativa

A evolução tecnológica impulsionou o desenvolvimento de modelos de negócio inovadores que alteraram a dinâmica das relações sociais e econômicas. As mudanças decorrentes da ruptura com os paradigmas tradicionais de relações trouxeram, dentre outros, questionamentos quanto ao papel dos indivíduos nas organizações e sua atuação no mercado de trabalho.

Uma das discussões mais pertinentes ao momento atual diz respeito à relação entre empresas de tecnologia que disponibilizam plataformas para conectar usuários e prestadores do serviço. O Poder Judiciário foi inundado com ações ajuizadas tanto por indivíduos quanto pelo Ministério Público do Trabalho para obter o reconhecimento do vínculo de emprego entre prestador e detentora da plataforma.

Recentemente, diversas decisões relevantes sobre o tema foram proferidas, cujos impactos extrapolam a seara trabalhista e reverberam na área tributária.

A mais recente delas e inédita no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (“TST”), analisou reclamação trabalhista proposta por motorista contra a empresa Uber para que fosse reconhecido o vínculo de emprego[1]. Em 5 de fevereiro, a 5ª Turma do Tribunal reconheceu que há independência do motorista em relação à empresa, que apenas disponibiliza a plataforma para que o motorista possa vender sua força de trabalho com autonomia.

Na mesma linha, no dia 27 de janeiro, a juíza do trabalho da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo proferiu sentença em Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho contra a empresa iFood para reconhecer que a atividade da empresa não se confunde com a atividade dos entregadores cadastrados em sua plataforma[2].

No caso, a juíza reconheceu que a atuação do iFood está restrita à “área de tecnologia, explorando um aplicativo de internet que possibilita ao restaurante receber pedidos e ao entregador/motorista prestar serviços de entrega”, “não sendo sua atividade primordial a oferta de transporte de mercadorias”.

Em agosto do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia analisado situação semelhante envolvendo a empresa Uber[3]. Naquela ocasião, o motorista ajuizou contra a empresa ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e morais perante o Juizado Especial Cível, que declinou da sua competência por entender que a matéria em debate decorreria de relação de emprego. Quando recebeu o processo para análise, a Justiça do Trabalho declarou-se igualmente incompetente para analisar o tema e suscitou o conflito perante o STJ.

Ao examinar o conflito, o STJ decidiu que a relação entre empresa e motorista é de cunho eminentemente civil. A empresa “atua no mercado através de um aplicativo de celular responsável por fazer a aproximação entre os motoristas parceiros e seus clientes, os passageiros” e “os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais”.

Portanto, diferentemente do que ocorre nas relações de emprego – que exigem pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade, o motorista atua de forma autônoma e eventual.

Como se observa das decisões acima, o Judiciário tem reconhecido que o indivíduo que se cadastra na plataforma (aplicativo) para prestação de serviços aos usuários realiza diretamente a prestação de serviços, por conta própria e com autonomia (seja de transporte, entrega ou qualquer outro realizado de forma independente via plataforma). Sua atividade, por sua vez, não pode ser atribuída à plataforma, que apenas disponibiliza a tecnologia para conectar pessoas.

Nesses casos, especialmente, houve o claro reconhecimento de que as atividades realizadas pela plataforma e pelos motoristas/entregadores são distintas, um sinal positivo para as empresas que atuam na chamada “economia colaborativa” que recebem olhares desconfiados dos entes federativos quanto à sua efetiva atividade de intermediação.

Não raras vezes, essas empresas são questionadas tanto por Estados quanto Municípios com relação ao recolhimento de impostos incidentes sobre a prestação de serviço pelos indivíduos cadastrados na plataforma.

Na prática, é mais fácil para o fisco exigir das empresas de tecnologia o imposto eventualmente devido pelos prestadores individuais. Para isso, as autoridades tentam desnaturar a atividade efetivamente exercida pelas plataformas ou, muitas vezes, atribuir a elas a responsabilidade pelo recolhimento dos impostos devidos pelos indivíduos prestadores.

Na primeira hipótese, as empresas são demandadas pelo fisco como se elas próprias prestassem o serviço final ao usuário, devendo arcar, portanto, com o ônus do tributo incidente sobre toda a parcela paga pelo usuário. Sobre esse ponto, o racional estabelecido nos precedentes ora examinados é particularmente relevante para rebater o entendimento das autoridades fiscais quanto à suposta prestação direta de serviços ao usuário pela plataforma.

Na segunda hipótese, as plataformas são demandadas pelo fisco como se elas fossem responsáveis pelo recolhimento de tributos incidentes nas prestações que por ela intermediadas. Sobre esse ponto, não podemos esquecer que responsabilidade tributária é matéria reservada à lei complementar[4] e o Código Tributário Nacional (CTN), que hoje dispõe sobre o assunto, não atribui responsabilidade às plataformas pelo imposto devido pelos indivíduos que nela se cadastram para prestar serviços.

A questão relativa à subtributação dos valores recebidos pelos indivíduos prestadores foi um dos argumentos empregados pelo Ministério Público do Trabalho para justificar o ajuizamento da ação civil pública contra o iFood. Segundo o Ministério Público, “não há incidência direta de ISS sobre a maior parte do valor recebido pelo serviço de entrega”.

A decisão proferida pela juíza do caso apontou que “a questão da sonegação é inegavelmente delicada e preocupante, eis que afeta toda a sociedade, pois a prestação de serviços pelo Estado é custeada com os tributos arrecadados. Entretanto, tais fatos não determinam o tipo de contrato de trabalho e nem deve influenciar na análise dos mesmos”.

Ou seja, a vontade do Estado de tributar determinadas operações não prevalece sobre a realidade posta, tampouco sobre a lei que estabelece o fato gerador do tributo e o sujeito passivo.

Não podem os entes federativos desvirtuar a lei ou os fatos concretos por conta da dificuldade de fiscalização dos indivíduos. Da mesma forma, se a legislação não é satisfatória para atingir determinados fatos e obter o resultado de arrecadação pretendido pelo Estado, que esta seja alterada pelos meios legítimos, respeitando-se os contornos constitucionais.

A preocupação dos entes federativos quanto à arrecadação é legítima, mas é preciso respeitar os contornos legislativos. O ente federativo precisa identificar com clareza a atividade desempenhada por cada agente da economia colaborativa para que possa cobrar de forma justa e devida o tributo incidente sobre as respectivas operações.

Nesse ponto, as decisões acima são essencialmente importantes para esclarecer que as empresas detentoras de plataforma de intermediação não devem ser tributadas pelas atividades exercidas pelos indivíduos cadastrados em suas plataformas e que prestam serviços diretamente aos usuários sem qualquer participação ou direção do intermediador.

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[1] Recurso de Revista nº 1000123.89.2017.5.02.0038.

[2] Ação Civil Pública nº 1000100-78.2019.5.02.0037.

[3] Conflito de Competência nº 164.544/MG.

[4] Conforme previsto no artigo 146, inciso III, “a”, da Constituição Federal de 1988.

Autora: Gabriela de Souza Conca