Economia digital e os desafios para a tributação global
A digitalização da economia trouxe uma série de desafios para a tributação, tanto sob a perspectiva da renda quanto do consumo. A comunidade internacional tem discutido intensamente alternativas para assegurar uma tributação global mais justa e eficiente, estabelecendo uma série de diretrizes para guiar a adoção de políticas individuais pelos países.
Trazemos aqui algumas reflexões sobre como o cenário tributário internacional tem sido moldado pelos avanços da economia digital, as respostas apresentadas pela comunidade internacional e as iniciativas tomadas pelo Brasil frente a esses movimentos.
1. Pilar 1 e Pilar 2¹
As regras do Pilar 1 e Pilar 2 propostas pela OCDE pretendem evitar o deslocamento da renda para países com baixa tributação e alocá-la de forma mais justa, levando-se em conta o mercado consumidor.
Enquanto ainda não existe um consenso sobre as métricas para a justa alocação da renda segundo o mercado consumidor, uma alíquota mínima global de 15% aplicada sobre o lucro das multinacionais já foi aprovada e implementada em algumas jurisdições.
No Brasil, a recente MP nº 1.262/24 editada pelo executivo trouxe o adicional de CSLL como forma de se ajustar ao Pilar 2 e criar um imposto mínimo global de 15% aplicável às multinacionais com receitas anuais superiores a € 750 milhões. Segundo o governo, a intenção é reter parcela da receita tributária que poderia ir para outras jurisdições caso o Brasil não implementasse a medida. Em paralelo, também foi apresentado o Projeto de Lei nº 3817/2024, que basicamente reproduz o texto da Medida Provisória.
O Ministério da Fazenda estima que aproximadamente 290 multinacionais que atuam no Brasil sejam afetadas pelas novas regras, sendo 20 brasileiras².
O texto do Projeto de Lei nº 3817/2024 foi aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados no último dia 17/12 e no Senado em 18/12, seguindo agora para sanção presidencial. A medida é discutível e já levantou uma série de dúvidas sobre sua implementação.
2. Regras de preços de transferência³
Desde 1976, a OCDE tem publicado diretrizes sobre preços de transferência. Essas diretrizes são frequentemente atualizadas para refletir as novas dinâmicas de mercado decorrentes da digitalização da economia e operações com intangíveis.
No intuito de convergir para o padrão OCDE, o Brasil editou a Lei nº 14.596/2023, regulamentada pela IN nº 2.161/2023, ajustando suas regras de preços de transferência.
As principais mudanças que dizem respeito à economia digital são: (i) abrangência das novas regras para incluir pagamentos de royalties, direitos autorais e outras remunerações de intangíveis antes não cobertas; (ii) revogação das limitações à dedução de royalties pagos a sócios, empresa matriz ou controladora no exterior; (iii) revogação do limite máximo de dedução de 5%; e (iv) fim da liberdade de escolha do método pela empresa.
3. Tratados internacionais⁴
A economia digital transformou a dinâmica do comércio global, trazendo desafios para a aplicação dos tratados internacionais, concebidos em contextos econômicos tradicionais.
Os maiores desafios enfrentados atualmente decorrem da qualificação jurídica da operação (se determinada remessa receberá o tratamento de lucro empresarial, royalty ou serviço técnico pelas regras do tratado) e das adaptações do conceito de estabelecimento permanente para englobar o “estabelecimento permanente virtual”.
No Brasil, teremos alguns desses temas enfrentados pelo Poder Judiciário. Recentemente, o STJ afetou os Recursos Especiais nºs 2.060.432/RS, 2.133.370/SP e 2.133.454/SP para definir, sob a sistemática dos recursos repetitivos, sobre a legalidade da incidência do IRRF sobre as remessas para pagamento de serviços prestados sem transferência de tecnologia ao amparo dos tratados para evitar a bitributação.
4. Reforma da tributação do consumo⁵
Em 2017, a OCDE consolidou no VAT/GST Guidelines as principais diretrizes sobre a tributação do IVA. Essas diretrizes já guiaram reformas em mais de 100 jurisdições, incluindo o Brasil.
A recém-aprovada reforma tributária do consumo (EC nº 132/23) impacta os players da economia digital em muitos sentidos. Dentre as mudanças mais significativas, vemos as seguintes: (i) instituição de uma base ampla de incidência, que abarca todas as operações com tangíveis e intangíveis; (ii) alíquota padronizada; (iii) tributação no destino; e (iv) responsabilização das plataformas digitais pelo recolhimento de tributos.
As mudanças prometem eliminar disputas sobre a qualificação jurídica das operações – discussão muito relevante para a economia digital -, reduzindo a guerra fiscal entre Estados e Municípios, trazer igualdade e neutralidade tributária, bem como aumentar a eficiência na arrecadação do novo IVA.
A regulamentação da reforma do consumo é objeto dos Projetos de Lei nºs 68/2024 e 108/2024, que estão tramitando no Congresso Nacional. O Projeto de Lei nº 68/2024 já teve aprovação nas duas casas legislativas e segue para sanção presidencial, enquanto o Projeto de Lei nº 108/2024 foi aprovado pela Câmara dos Deputados e aguarda apreciação no Senado. Ainda existem diversos pontos em aberto e passíveis de questionamento no âmbito desses projetos de lei.
5. Novas tendências de tributação⁶
A comunidade internacional ainda discute, de forma embrionária, a tributação da coleta de dados para uso comercial. Há a percepção de que as empresas de tecnologia geram valor a partir de dados coletados de forma gratuita dos usuários dos seus serviços, sendo que esta geração de riqueza deveria ser tributada.
Os Estados de Nova York e Washington já propuseram a criação de um “data excise tax”, tributo que deve recair sobre as big techs em vista da coleta de dados pessoais com fins lucrativos.
Ainda não há clareza sobre os impactos da implementação de uma medida dessa natureza. No Brasil, as despeito de algumas iniciativas legislativas focadas nas big techs e rumores do presente governo sobre novas propostas visando os lucros auferidos por esses players, ainda não tivemos propostas concretas sobre a tributação da coleta de dados.
Como enfrentar essas mudanças?
Vemos uma tendência clara de adaptação do Brasil aos padrões mundiais, especialmente em vista do seu pleito de ingresso na OCDE. Aqui vão algumas dicas para as empresas da economia digital enfrentarem essas mudanças legislativas:
- Invista em conhecimento e treinamento. Entender adequadamente as alterações permitirá uma melhor avaliação de como os custos e a competitividade serão afetados, ajudará na tomada de decisões estratégicas e implementação do planejamento fiscal da empresa.
- Não se esqueça que no contexto global as análises não podem ser feitas de forma isolada. Para as multinacionais, é preciso avaliar os impactos das mudanças legislativas por jurisdição e de forma integrada.
- Adapte os processos, sistemas e controles internos para atender às novas diretrizes (emissão de notas fiscais, cálculo de tributos, escrituração contábil, emissão de declarações fiscais e relatórios). Aproveite para utilizar ferramentas de análise para mapear os cenários e impactos decorrentes de alterações legislativas.
- Faça o mapeamento dos contratos (inclusive intercompany) e dos ajustes necessários para fazer frente aos impactos das mudanças. Documente muito bem suas operações e conte com o apoio do departamento jurídico para avaliar novos planos/operações.
- As mudanças vêm com certo tempo de adaptação. Aproveite as oportunidades que ainda existem nos sistemas vigentes para alavancar seu diferencial.
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[1] Leia mais sobre as propostas apresentadas pela OCDE referentes às regras do Pilar 1 e Pilar 2 em OECD (2019), Programme of Work to Develop a Consensus Solution to the Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy, OECD/G20 Inclusive Framework on BEPS, OECD, Paris, www.oecd.org/tax/beps/programme-of-work-to-develop-aconsensus-solution-to-the-tax-challenges-arising-from-the-digitalisation-of-the-economy.htm.
[2] Fonte: Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1122505-camara-aprova-projeto-que-estabelece-tributacao-minima-de-15-sobre-lucro-das-multinacionais-acompanhe/
[3] Leia mais sobre as recomendações da OCDE referentes à adoção de regras de preços de transferência em OECD (2023), OECD Guidelines for Multinational Enterprises on Responsible Business Conduct, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/81f92357-en.
[4] Leia mais sobre o relatório da OCDE que discute as principais diretrizes para a elaboração dos acordos de bitributação e como as jurisdições têm observado essas diretrizes em OECD (2023), Prevention of Tax Treaty Abuse – Fifth Peer Review Report on Treaty Shopping: Inclusive Framework on BEPS: Action 6, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/9afac47c-en.
[5] Veja as tendências da tributação do consumo pelo IVA apontadas no relatório da OCDE disponível em: OECD (2024), Consumption Tax Trends 2024: VAT/GST and Excise, Core Design Features and Trends, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/dcd4dd36-en
[6] Lei mais as iniciativas dos Estados de Nova York e Washington em: https://news.bloombergtax.com/daily-tax-report-state/data-excise-taxes-are-cutting-edge-but-packed-with-legal-risks